Campo Grande (MS) – No dia em que se comemora nove anos da Lei Maria da Penha, criada para coibir a agressão contra mulheres, um projeto desenvolvido pela Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário (Agepen) demonstra a preocupação de não apenas punir, mas também de conscientizar e proporcionar uma nova perspectiva àqueles que, por conta dessa violência, se tornaram criminosos.
“Restaurando Vidas” é o nome desse projeto psicossocial que está sendo desenvolvido no Centro de Triagem “Anísio Lima”, em Campo Grande, unidade que é destinada pela agência penitenciária a quem comete o crime previsto nesta lei. Coordenada pela Diretoria de Assistência Penitenciária da Agepen, por meio da Divisão de Saúde, a iniciativa consiste na realização de terapia em grupo, dinâmicas, exposição de depoimentos, de vídeos e atendimentos individuais.
Iniciada há cinco meses, a ação acontece uma vez por semana e já atendeu a cerca de 70 detentos. Atualmente 18 reclusos participam das reuniões do grupo, trocando experiências e recebendo orientações caso a caso. Nos relatos, histórias de relacionamentos destruídos pela agressão física e psicológica, principalmente devido ao uso abusivo de álcool e outras drogas, ciúme doentio, dificuldades financeiras e desavença com enteados.
Em sete meses de um relacionamento iniciado nas redes sociais, W.V., 39 anos, espancou sua companheira. A culpa, segundo ele, foi do ciúme ocasionado principalmente pela tecnologia que os uniu. “A gente brigava muito por causa de nós dois ficarmos muito no Facebook e no WhatsApp, era muita desconfiança. Então, um dia eu estava alucinado pela droga e não vi mais nada, me contaram que eu machuquei bastante ela”. Sobre o futuro, o interno pensa apenas em recomeçar, a aprender a vencer a timidez e a baixa autoestima para, só depois disso buscar um novo relacionamento amoroso.
Conforme a psicóloga do Módulo de Saúde da Agepen, Rosana Costa, coordenadora do projeto, os encontros abordam questões que levam à reflexão sobre o erro cometido e a necessidade de mudança que realmente possam restaurar suas vidas. “O aprisionamento apenas não corrige o problema, é necessário que eles saiam diferentes de quando entraram aqui e sejam capazes de superar esse conceito de relações doentias”, destaca.
Rosana ressalta que o objetivo dos encontros é estimular a autoestima, já que muitas vezes a violência advém de uma dificuldade de aceitação própria e da incapacidade de controle sobre as emoções. Já tendo atuado também na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, a profissional utiliza esse conhecimento como forma conscientização. “Conheço os dois lados e passo essa minha experiência a eles, de qual o impacto da agressão, seja física ou psicológica, na vida de suas parcerias”, comenta.
“Quando entrei aqui só pensava em sair e matar ela, tinha muita raiva por ter vindo parar neste lugar, mas com os encontros do grupo fui vendo que o errado era eu. Ela me pediu muitas vezes para eu parar de me drogar e não escutei. Eu chegava em casa de madrugada cheirando cachada e droga e queria namorar com ela, fazia forçado mesmo”, conta o interno T.P., 23 anos.
Autor do nome do projeto, o reeducando garante que a ação o tem ajudado a ter uma nova perspectiva sobre suas atitudes. “Aprendi a reconhecer meus erros, e a buscar elevar minha autoestima. Mudou minha vida bastante”, afirma o detento, que já está há 11 meses no presídio e ainda não sabe quando vai sair, pois lhe foi imputada uma medida de tratamento e, enquanto não for considerado curado pela perícia do Judiciário, permanecerá encarcerado.
Os presos pela Lei Maria da Penha correspondem atualmente 25% do total da massa carcerária do Centro de Triagem. O presídio concentra todos os custodiados por esse crime provenientes da Capital e região. Duas celas são destinadas especificamente a eles, uma de inclusão, onde ficam durante os primeiros 30 dias, e outra para o restante do cumprimento da pena imposta.
De acordo com o diretor da unidade prisional, Alírio Francisco do Carmo, os presos pela Lei Maria da Penha em geral não possuem perfil criminoso, têm com comportamento, ficam em média dois meses no presídio e dificilmente voltam a ser presos pelo mesmo crime. “Em geral são pais de família, trabalhadores”, informa o diretor.
Casado há 10 anos, pai de dois filhos, e com um trabalho registrado em carteira, S.G., 34 anos, hoje vive as mazelas de uma prisão. Ele conta que o casamento sempre foi conturbado, com muitas brigas ocasionadas principalmente pelo consumo excessivo de álcool pelo casal. “Saíamos para beber e, ao chegarmos em casa, tudo era motivo para troca de agressões. Ela sentia ciúme de mim eu sentia ciúme dela, não tínhamos dialogo e nem conversa, isso era coisa rotineira, mas com o tempo foi se agravando, com agressões mais fortes”, revela. S.G chegou a ser preso no final do ano passado devido a uma suposta tentativa de homicídio por ter jogado álcool na companheira. Por falta de provas conclusivas, ele foi absolvido da acusação.
O custodiado diz que, após essa prisão, voltaram a se relacionar, mesmo tendo contra ele uma medida protetiva para a esposa. Retomamos nossa vida do zero, construindo o nosso lar no fundo da casa da minha mãe, tivemos acompanhamento evangélico. Até fomos ao Fórum para revogar a medida protetiva, fomos à Defensoria Pública para revogação da separação, mas um dia estávamos passeando, ela desceu do carro correu para delegacia que estava perto e disse ser um suposto sequestro, como eu estivesse sequestrando ela. Não entendo foi sem motivo, não teve briga, não teve nada”, dá a sua versão sobre o fato, atribuindo a um “problema psicológico” que ele alega que a esposa vinha sofrendo.
O detento garante quando sair do presídio não vai tentar voltar para a mulher, pois acredita que o laço afetivo-familiar não dá mais certo. “Já tivemos inúmeras agressões, é segunda vez que estou passando por isso de ficar preso, agora só quero contato com os nossos filhos mesmo. Eu tenho que apreender a gostar de mim também, para depois gosta de outra pessoa, mas quero forma outra família futuramente”, conclui.
Para o diretor-presidente da Agepen, Ailton Stropa Garcia, iniciativas como o “Restaurando Vidas” demonstram o comprometimento dos profissionais que atuam no Sistema Penitenciário de Mato Grosso do Sul. “É exemplo de mais um esforço para vencermos o grande desafio de conseguirmos tornar melhores os custodiados que recebemos”, finaliza.
Keila Oliveira